
A aceitação inicial dos 22 livros (correspondentes exatamente aos nossos 39) das Escrituras hebraicas não resolveu a questão de uma vez por todas. Estudiosos de eras posteriores, nem sempre totalmente conscientes dos fatos a respeito dessa aceitação original, tornavam a levantar questões concernentes a determinados livros. A discussão deu ensejo a que surgisse uma terminologia técnica. Os livros bíblicos aceitos por todos eram chamados "homologoumena" (lit., falar como um). Os livros bíblicos que em certa ocasião tivessem sido questio¬nados por alguns foram classificados como "antilegomena" (falar contra). Os livros não-bíblicos rejeitados por todos foram intitulados "pseudepígrafos" (falsos escritos). Uma quarta categoria compreendia livros não-bíblicos aceitos por alguns, mas rejeitados por outros, dentre os quais os livros questionáveis, chamados "apócrifos" (escondidos ou duvidosos). Nosso tratamento girará em torno dessa classificação em quatro tipos.
Os livros aceitos por todos > homologoumena
Acanonicidade de alguns livros jamais foi desafiada por nenhum dos grandes rabis da comunidade judaica. Desde que alguns livros foram aceitos pelo povo de Deus como documentos produzidos pela mão dos profetas de Deus, continuaram a ser reconhecidos como detentores de inspiração e de autoridade divina pelas gerações posteriores. Trinta e quatro dos 39 livros do Antigo Testamento podem ser classificados como "homologoumena". Os cinco excluíveis seriam Cântico dos Cânticos, Eglesiastes, Ester, Ezequiel e Provérbios. Visto, porém, que nenhum desses livros foi alvo de objecão muito séria, nossa atenção pode voltar-se para os outros livros.
Os livros rejeitados por todos > pseudepígrafos
Grande número de documentos religiosos espúrios que circulavam entre a antiga comunidade judaica são conhecidos como "pseudepígrafos". Nem tudo nesses escritos "pseudepigráficos” é falso. De fato, a maior parte desses documentos surgiu de dentro de um contexto de fantasia ou tradição religiosa, possivelmente com raízes em alguma verdade. Com frequência, a origem desses escritos estava na especulação espiritual a respeito de algo que não ficou bem explicado nas Escrituras canônicas.
As tradições especulativas a respeito do patriarca Enoque, por exemplo, sem dúvida são a raiz do livro de Enoque. De maneira semelhante, a curiosidade a respeito da morte e da glorificação de Moisés, sem dúvida alguma, acha-se por trás da obra Assunção de Moisés No entanto, essa especulação não significa que não exista verdade nenhuma nesses livros. Ao contrário, o Novo Testamento refere-se a verdades implantadas nesses dois livros (cf. Jd 14,15) e chega a aludir à penitência de Janes e Jambres (2Tm 3.8). Entretanto, esses livros não são mencionados como dotados de autoridade, como Escrituras inspiradas. A semelhança das citações que Paulo faz de alguns poetas não-cristãos, como Arato (At 17.28), Menânder (1Co 15.33) e Epimênides (Tt 1.12), trata-se tão somente de verdades verificáveis, contidas em livros que em si mesmos nenhuma autoridade divina têm. A verdade é sempre verdade, não importa onde se encontre, quer pronunciada por um poeta pagão, quer por um profeta pagão (Nm 24.17), por um animal irracional e mudo (Nm 22.28), ou mesmo por um demónio (At 16.17).
Observe que nenhuma fórmula como "está escrito" ou "segundo as Escrituras" é utilizada quando o escritor sagrado se refere a tais obras “pseudoepigráficas”. É possível que o fato mais perigoso a respeito desses falsos escritos é que alguns elementos da verdade são apresentados com palavras de autoridade divina, num contexto de fantasias religiosas que em geral contêm heresias teológicas. É importante que nos lembremos de que Paulo cita apenas aquela faceta da verdade, e não o livro pagão como um todo, como conceito a que Deus atribuiu autoridade e fez constar do Novo Testamento.
A natureza dos pseudepígrafos
Os pseudepígrafos do Antigo Testamento contêm os extremos da fantasia religiosa judaica expressos entre 200 a.C. e 200 d.C Alguns desses livros são inofensivos, teologicamente (e.g., SI 151), mas outros contêm erros históricos e claras heresias. Desafia-se com vigor a genuinidade desses livros, pelo fato de haver quem afirme que foram escritos por autores bíblicos. Os "pseudepígrafos" refletem o estilo literário vigente num período muito posterior ao encerramento dos escritos proféticos, de modo que muitos desses livros imitam o estilo apocalíptico de Ezêquiel, de Daniel e de Zacarias — ao referir-se a sonhos, visões e revelações. No entanto, diferentemente desses profetas, os "pseudepígrafos" com frequência tornam-se mágicos. Os "pseudepígrafos" ressaltam, sobretudo, um brilhante futuro messiânico, cheio de recompensas para todos quantos vivem em sofrimento e abnegação. Sob a superfície existe, com frequência, um motivo religioso inocente, porém desencaminhado. Todavia, a infundada reivin¬dicação de autoridade divina, o caráter altamente fantasioso dos acontecimentos e os ensinos questionáveis (e até mesmo heréticos) levaram os pais do judaísmo a considerá-los espúrios. O resultado, pois, é que tais livros foram corretamente rotulados de "pseudepígrafos".
O número dos pseudepígrafos
A coleção modelar de "pseudepígrafos" contém dezessete livros. Acrescente-se o salmo 151, que se encontra na versão do Antigo Testamento feita pelos Setenta. A lista principal é a seguinte:
Lendários > 1. O Livro do Jubileu; 2.Epístola de Aristéias; 3. O Livro de Adão e Eva; 4. O Martírio de Isaías.
Apocalíptico > 1. 1 Enoque; 2. O Testamento dos Doze Patriarcas; 3. O Oráculo Sibilino; 4. Assunção de Moisés; 5. 2 Enoque, ou Livro dos Segredos de Enoque; 6. 2 Baruque, ou Apocalipse Siríaco de Baruque (1 Baruque está relacionado entre os apócrifos); 7. 3 Baruque, ou Apocalipse Grego de Baruque.
Didáticos > 1. 3 Macabeus; 2. 4 Macabeus; 3. Pirque Abote; 4. A História de Aicar.
Poéticos > 1. Salmos de Salomão; 2. Salmo 151
Históricos > 1. Fragmentos de uma obra de Sadoque.
De modo nenhum essa lista é completa. Outros são conhecidos, mesmo alguns muito interessantes que vieram à luz quando da descoberta dos rolos do mar Morto. Dentre esses estão o “Gênesis apócrífo” e “Guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas” e outros.
Os livros questionados por alguns > antilegomena
A natureza dos antilegomena
Os livros que originariamente eram aceitos como canônicos, e mesmo mais tarde também assim reconhecidos, tendo sido, porém, objeto de grave controvérsia entre os rabis, durante o processo de canonização, são de grande interesse para nós. Na aula anterior, vimos como todos os 39 livros do Antigo Testamento foram de início aceitos pelo povo de Deus, vindos dos profetas. Durante os séculos seguintes, surgiu e desenvolveu-se uma escola de pensamento diferente, dentro do judaísmo, que passou a questionar, entre outras coisas, a canonicidade de certos livros do Antigo Testamento que, antes, haviam sido canonizados. Por fim, tais livros foram reconduzidos ao cânon sagrado, por haver prevalecido a categoria de inspirados que lhes havia sido atribuída de início. No entanto, em vista de tais livros terem sido, nesta ou naquela época, difa¬mados por alguns rabis, passaram a chamar-se "antilegomena".
O número dos antilegomena
A canonicidade de cinco livros do Antigo Testamento foi questionada numa ou noutra época por algum mestre do judaísmo: Cântico dos Cânticos, Eclesiastes, Ester, Ezequiel e Provérbios. Cada um deles tornou-se controvertido por razões diferentes, todavia, no fim prevaleceu a autoridade divina de todos estes cinco livros.
Cântico dos Cânticos. Alguns estudiosos da escola de Shammai consideravam esse cântico sensual em sua essência. Sabidamente, numa tentativa de abafar a controvérsia e defender a canonicidade do Cântico dos Cânticos, o rabino Aquiba escreveu o seguinte:
Livre-nos Deus! Ninguém jamais em Israel criou controvérsia acerca do Cântico dos Cânticos, alegando não tornar imundas as mãos [i.e., não ser canônico]; todas as eras somadas não equivalem ao dia em que o Cântico dos Cânticos foi dado a Israel. Todos os Escritos são santos, mas o Cântico dos Cânticos é o Santo dos Santos.
Como bem observaram alguns, o simples fato de surgir uma declaração desse teor dá mostras de que alguém duvidou da pureza desse livro. Quaisquer que tenham sido as dúvidas voltadas para o alegado caráter sensual do Cântico dos Cânticos, foram mal orientadas. É muito mais provável que a pureza e a nobreza do casamento façam parte do propósito essencial desse livro. Sejam quais forem as questões levantadas a respeito das várias interpretações, não deve prevalecer nenhuma dúvida concernente à inspiração desse livro, desde que seja visto da perspectiva espiritual correta.
Eclesiastes. A objeção que às vezes é atirada contra esse livro é que ele parece cético. Alguns até o têm chamado O cântico do ceticismo. O rabino Aquiba dizia: "Se há algo em questão, a questão gira em torno só do Eclesiastes [e não do Cântico]". Não resta a menor dúvida a respeito do tom às vezes cético do livro: "Vaidade das vaidades [...] tudo é vaidade! [...] nada há novo debaixo do sol [...] na muita sabedoria há muito enfado; o que aumenta o conhecimento aumenta a tristeza" (Ec 1.2,9,18). O que se negligencia quando se acusa o livro de ceticismo é tanto o contex¬to dessas declarações quanto a conclusão geral do livro. Qualquer pes¬soa que procure a máxima satisfação "debaixo do sol" com toda certeza há de sentir as mesmas frustrações sofridas por Salomão, visto que a felicidade eterna não se encontra neste mundo temporal. Além do mais, a conclusão e o ensino genérico desse livro todo estão longe de ser céticos. Depois "de tudo o que se tem ouvido", o leitor é admoestado, "a conclusão é: Teme a Deus, e guarda os seus mandamentos, pois isto é todo o dever do homem" (Ec 12.13). Tanto no que se refere ao Eclesiastes, como ao Cântico dos Cânticos, o problema básico é de interpretação do texto, e não de canonização ou inspiraçao.
Ester. Em vista da ausência do nome de Deus nesse livro, alguns pensaram que ele não fosse inspirado. Perguntavam, como podia um livro ser Palavra de Deus se nem ao menos trazia o seu nome? Além disso, a história do livro parece ter natureza puramente secular. O resultado é que se fizeram várias tentativas para explicar o fenômeno da aparente ausência do nome de Deus em Ester. Alguns acreditaram que os judeus persas não estavam na linhagem teocrática, e por isso o nome do Deus da aliança não se relacionava a eles. Outros sustentam que a omissão do nome de Deus é proposital, a fim de proteger o livro da possibilidade do plágio pagão: o nome de Deus ser substituído por um falso deus. Ainda outros conseguem ver o nome de Jeová ou Yavé (YHWH) num acróstico em quatro momentos cruciais na história, o que em si eliminaria a possibilidade.
Seja qual for a explicação, uma coisa é certa: a ausência do nome de Deus é compensada pela presença de Deus na preservação de seu povo. Ester e as pessoas que a cercavam eram devotas: prescreveu-se um jejum religioso, e Ester exerceu grande fé (Et 4.16). O fato de Deus haver concedido grande livramento, como narra o livro, serve de fundamento e razão da festa judaica do Purim (Et 9.26-28). Basta esse fato para demonstrar a autoridade atribuída ao livro dentro do judaísmo.
Ezequiel.Havia pessoas dentro da escola rabínica que pensavam que o livro de Ezequiel era antimosaico em seu ensino. A escola de Shammai, por exemplo, achava que o livro não estava em harmonia com a lei mosaica, e que os primeiros dez capítulos exibiam uma tendência para o gnosticismo. É claro, então, que, se houvesse contradições no livro, ele não poderia ser canônico. No entanto, não se verificaram contradições reais em relação à Tora. Parece que outra vez teria sido mera questão de interpretação, e não de inspiração.
Provérbios. A objeção a Provérbios centrava-se no fato de alguns dos ensinos do livro parecerem incompatíveis com outros provérbios. Falando dessa alegada incoerência interna, assim diz o Talmude: "Também procuraram esconder o livro de Provérbios, porque suas palavras se contra¬diziam entre si" ("Shabbath", 30b). Uma dessas supostas contradições encontra-se no capítulo 26, em que o leitor é exortado a responder e ao mesmo tempo não responder ao tolo segundo sua tolice: "Responde ao tolo segundo a sua estultícia, para que não seja ele sábio aos seus próprios olhos" (Pv 26.4,5). Todavia, como outros rabis têm observado, o sentido aqui é que há ocasiões em que o tolo deve receber resposta de acordo com sua tolice, e outras ocasiões em que isso não deve ocorrer. Visto que as declarações estão explicitadas em versículos sucessivos, forma legítima da poesia hebraica, quem os redigiu, não viu nenhuma contradição. A frase qualificativa que indica se alguém deveria ou não responder a um tolo revela que as situações que exigem reações diferentes também são diferentes. Não existe contradição em Provérbios 26, nen nenhuma contradição ficou demonstrada em qualquer outra passagem de Provérbios, e, por isso, nada atravanca o caminho da canonicidade.
Os livros aceitos por alguns > apócrifos
O âmbito mais crucial de desacordo a respeito do cânon do Antigo Testamento entre os cristãos é o debate sobre os chamados livros apócrifos.
Tais livros são aceitos pelo católicos romanos como canônicos e rejeitados por protestantes e judeus. Na realidade, os sentidos da palavra “apocrypha” refletem o problema que se manifesta nas duas concepções de sua canonicidade. No grego clássico, a palavra apocrypha significava
"oculto" ou "difícil de entender". Posteriormente, tomou o sentido de esotérico, ou algo que só os iniciados podem entender, não os de fora. Pela época de Ireneu e de Jerônimo (séculos III e IV), o termo apocrypha veio a ser aplicado aos livros não-canônicos do Antigo Testamento, mesmo aos que foram classificados previamente como "pseudepígrafos". Desde a era da Reforma, essa palavra tem sido usada para denotar os escritos judaicos não-canônicos originários do período intertestamentário. A questão diante de nós é a seguinte: verificar se os livros eram escondidos a fim de ser preservados, porque sua mensagem era profunda e espi¬ritual, ou porque eram espúrios e de confiabilidade duvidosa.
Natureza e número dos apócrifos do Antigo Testamento
Há guinze livros chamados apócrifos (catorze se a Epístola de Jeremias se unir a Baruque, como ocorre nas versões católicas de Douai). Com exceção de 2 Esdras, esses livros preenchem a lacuna existente entre Malaquias e Mateus, e compreendem especificamente dois ou três séculos antes de Cris¬to. Vejam a seguir suas datas e classificação:
Os Livros Apócrifos
.Didáticos > 1. Sabedoria de Salomão (c 30 a.C); 2. Eclesiártico (132 a.C);
.Religioso > 3. Tobias (c 200 a.C);
.Romance > 4. Judite (c 150 a.C);
.Histórico > 5. 1 Esdras (c 150 – 100 a.C); 6. 1 Macabeus (c 110 a.C); 7. 2 Macabeus (c 119-70 a.C);
.Profético > 8. Baruque (c 150-50 a.C); 9. Epístola de Jeremias (c 300-100 a.C); 10. 2 Esdras (c 100 d.C);
Lendário > 11. Adições a Ester (140-110 a.C); 12. Oração de Azarias (séc I ou II a.C) também chamado der Cântico dos três Jovens; 13. Susana (séc I ou II a.C); 14. Bel e o Dragão (c 100 a.C); 15. Oração de Manassés (séc I ou II a.C).
Argumentos em prol da aceitação dos apócrifos do Antigo Testamento
Os livros apócrifos do Antigo Testamento têm recebido diferentes graus de aceitação pelos cristãos. A maior parte dos protestantes e dos judeus aceita que tenham valor religioso e mesmo histórico, sem terem, contudo, autoridade canônica. Os católicos romanos desde o Concílio de Trento têm aceito esses livros como canônicos. Mais recentemente, os católicos romanos têm defendido a ideia de uma deuterocanonicidade, mas os livros apócrifos ainda são usados para dar apoio a doutrinas extrabíblicas, tendo sido proclamados como livros de inspiração divina no Concílio de Trento. Outros grupos, como os anglicanos e várias igrejas ortodoxas, nutrem diferentes concepções a respeito dos livros apócrifos. A seguir apresentamos um resumo dos argumentos que em geral são aduzidos para a aceitação desses livros, na crença de que detêm algum tipo de canonicidade:
1. Alusões no Novo Testamento. O Novo Testamento reflete o pensamento e registra alguns acontecimentos dos apócrifos. Por exemplo, o livro de Hebreus fala de mulheres que receberam seus mortos pela ressurreição (Hb 11.35), e faz referência a 2 Macabeus 7 e 12. Os chamados apócrifos ou pseudepígrafos são também citados em sua amplitude pelo Novo Testa¬mento (Jd 14,15; 2Tm 3.8).
2. Emprego que o Novo Testamento faz da versão dos Septuaginta. A tradução grega do Antigo Testamento hebraico, em Alexandria, é conhecida como Septuaginta (LXX). É a versão mais citada pelos autores do Novo Testamento e pelos cristãos primitivos. A LXX continha os livros apócrifos. A presença desses livros na LXX dá apoio ao cânon alexandrino, mais amplo, do Antigo Testamento, em oposição ao cânon palestino, mais reduzido, que os omite.
3. Os mais antigos manuscritos completos da Bíblia. Os mais antigos manuscritos gregos da Bíblia contêm os livros apócrifos inseridos entre os livros do Antigo Testamento. Os manuscritos Aleph (X), A e B incluem esses livros, revelando que faziam parte da Bíblia cristã original.
4. A arte cristã primitiva. Alguns dos registros mais antigos da arte cristã refletem o uso dos apócrifos. As representações nas catacumbas às vezes se baseavam na história dos fiéis registrada no período intertestamentário.
5. Os primeiros pais da igreja. Alguns dos mais antigos pais da igreja, de modo particular os do Ocidente, aceitaram e usaram os livros apócrifos em seu ensino e pregação. E até mesmo no Oriente, Clemente de Alexandria reconheceu 2 Esdras como inteiramente canónico. Orígenes acrescentou Macabeus bem como a Epístola de Jeremias à lista de livros bíblicos canônicos. Ireneu mencionava O livro da sabedoria, e outros pais da igreja citavam outros livros apócrifos.
6. A influência de Agostinho. Agostinho (c. 354-430) elevou a tradição ocidental mais aberta, a respeito dos livros apócrifos, ao seu apogeu, ao atribuir-lhes categoria canônica. Ele influenciou os concílios da igreja, em Hipo (393 d.C.) e em Cartago (397 d.C), que relacionaram os apócrifos como canônicos. A partir de então, a igreja ocidental passou a usar os apócrifos em seu culto público.
7. O Concílio de Trento. Em 1546, o concílio católico romano do pós-Reforma, realizado em Trento, proclamou os livros apócrifos como canônicos, declarando o seguinte:
“O sínodo [...] recebe e venera [...] todos os livros, tanto do Antigo Testa¬mento como do Novo [incluindo-se os apócrifos] — entendendo que um único Deus é o Autor de ambos os testamentos [...] como se houvessem sido ditados pela boca do próprio Cristo, ou pelo Espírito Santo [...] se alguém não receber tais livros como sagrados e canônicos, em todas as suas partes, da forma em que têm sido usados e lidos na Igreja Católica [...] seja anátema”.
Desde esse concílio de Trento, os livros apócrifos foram considerados canônicos, detentores de autoridade espiritual para a Igreja Católica Romana.
8. Uso não-católico. As Bíblias protestantes desde a Reforma com frequência continham os livros apócrifos. Na verdade, nas igreja anglicanas os apócrifos são lidos regularmente nos cultos públicos, ao lado dos demais livros do Antigo e do Novo Testamento. Os apócrifos são também usados pelas igrejas de tradição ortodoxa oriental.
9. A comunidade do mar Morto. Os livros apócrifos foram encontrados entre os rolos da comunidade do mar Morto, em Qumran. Alguns haviam sido escritos em hebraico, o que seria indício de terem sido usados por judeus palestinos antes da época de Jesus.
Resumindo todos esses argumentos, essa postura afirma que o amplo emprego dos livros apócrifos por parte dos cristãos, desde os tempos mais primitivos, é evidência de sua aceitação pelo povo de Deus. Essa longa tradição culminou no reconhecimento oficial desses livros, no Concílio de Trento (1546), como se tivessem sido inspirados por Deus. Mesmo não-católicos, até o presente momento, conferem aos livros apócrifos uma categoria de paracanônicos, o que se deduz do lugar que lhes dão em suas Bíblias e em suas igrejas.
Razões por que se rejeita a canonicidade dos apócrifos
Os oponentes dos livros apócrifos têm apresentado muitas razões para excluí-los do rol de livros canónicos. Seus argumentos serão apresentados na mesma ordem dos argumentos levantados pelos que advogam a aceitação de um cânon maior.
1. A autoridade do Novo Testamento. O Novo Testamento jamais cita um livro apócrifo indicando-o como inspirado. As alusões a tais livros não lhes emprestam autoridade, assim como as alusões neotestamentárias a poetas pagãos não lhes conferem inspiração divina. Além disso, desde que o Novo Testamento faz citações de quase todos os livros canônicos do Antigo e atesta o conteúdo e os limites desse Testamento (omitindo os apócrifos), parece estar claro que o Novo Testamento indubitavelmente exclui os apócrifos do cânon hebraico. Josefo, o historiador judeu, rejeita expressamente os apócrifos, relacionando apenas 22 livros canônicos.
2. A tradução dos Septuaginta. A Palestina é que era o lar do cânon ju¬daico, jamais Alexandria, no Egito. O grande centro grego do saber, no Egito, não tinha autoridade para saber com precisão que livros pertenci¬am ao Antigo Testamento judaico. Alexandria era o lugar da tradução, não da canonização. O fato de a Septuaginta conter os apócrifos apenas comprova que os judeus alexandrinos traduziram os demais livros religiosos judaicos do período intertestamentário ao lado dos livros canônicos. Filo, o judeu alexandrino, rejeitou com toda a clareza a canonicidade dos apócrifos, no tempo de Cristo, assim como o judaísmo oficial em outros lugares e épocas. De fato, as cópias existentes da LXX datam do século IV d.C. e não comprovam que os livros haviam sido incluídos na LXX de épocas anteriores.
3. A Bíblia cristã primitiva. Os mais antigos manuscritos gregos da Bíblia datam do século IV. Seguem a tradição da LXX, que contém os apócrifos. Como foi observado acima, era uma tradução grega, e não o cânon hebraico. Jesus e os escritores do Novo Testamento quase sempre fizeram citações
da LXX, mas jamais mencionaram um livro sequer dentre os apócrifos. No máximo, a presença dos apócrifos nas Bíblias cristãs do século IV mostra tais livros eram aceitos, até certo ponto, por alguns cristãos, naquela époça. Isso não significa que os judeus, ou os cristãos como um todo, aceitaram esses livros como canônicos, isso sem mencionarmos a igreja universal, que nunca os teve na relação de livros canônicos.
4. A arte cristã primitiva. As representações artísticas não constituem base para apurar a canonicidade dos apócrifos. As representações pintadas nas catacumbas, extraídas de livros apócrifos, apenas mostram que os crentes daquela era estavam cientes dos acontecimentos do período in¬tertestamentário e os consideravam parte de sua herança religiosa. A arte cristã primitiva não decide nem resolve a questão da canonicidade dos apócrifos.
5. Os primeiros pais da igreja. Muitos dos grandes pais da igreja em seu começo, dos quais Melito, Orígenes, Cirilo de Jerusalém e Atanásio, depuseram contra os apócrifos. Nenhum dos primeiros pais de envergadu¬ra da igreja, anteriores a Agostinho, aceitou todos os livros apócrifos ca¬nonizados em Trento.
6. O cânon de Agostinho. O testemunho de Agostinho não é definitivo, nem isento de equívocos. Primeiramente, Agostinho às vezes faz supor que os apócrifos apenas tinham uma deuterocanonicidade (Cidade de Deus, 18,36), e não canonicidade absoluta. Além disso, os Concílios de Hipo e de Cartago foram pequenos concílios locais, influenciados por Agostinho e pela tradição da Septuaginta grega. Nenhum estudioso hebreu qualificado esteve presente em nenhum desses dois concílios. O especialista hebreu mais qualificado da época, Jerônimo, argumentou fortemente contra Agostinho, ao rejeitar a canocidade dos apócrifos. Jerônimo chegou a recusar-se a traduzir os apócrifos para o latim, ou mesmo incluí-los em suas versões em latim vulgar (Vulgata latina). Só depois da morte de Jerônimo, e praticamente por cima de seu cadáver, é que os livros apócrifos foram incorpora¬dos à Vulgata latina.
7. O Concílio de Trento. A ação do Concílio de Trento foi ao mesmo tempo polémica e prejudicial. Em debates com Lutero, os católicos romanos haviam citado Macabeus, em apoio à oração pelos mortos (v. 2 Macabeus 12.45,46). Lutero e os protestantes que o seguiam desafiaram a canonicidade desse livro, citando o Novo Testamento, os primeiros pais da igreja e os mestres judeus, em apoio. O Concílio de Trento reagiu a Lutero, canonizando os livros apócrifos. A ação do Concílio não foi apenas patentemente polêmica, foi também prejudicial, visto que nem todos os catorze (quinze) livros apócrifos foram aceitos pelo Concílio. Primeiro e Segundo Esdras (3 e 4 Esdras dos católicos romanos; a versão de Douai denomina l e 2 Esdras, respectivamente, os livros canônicos de Esdras e Neemias) e a Oração de Manassés foram rejeitados. A rejeição de 2 Esdras é particularmente suspeita, porque contém um versículo muito forte contra a oração pelos mortos (2 Esdras 7.105). Aliás, algum escriba medieval havia cortado essa seção dos manuscritos latinos de 2 Esdras, sendo conhecida pelos manuscritos árabes, até ser reencontrada outra vez em latim por Robert L. Bentley, em 1874, numa biblioteca de Amiens, na França.
Essa decisão, em Trento, não refletiu uma anuência universal, indisputável, dentro da Igreja Católica e na Reforma. Nessa exata época, o cardeal Cajetan, que se opusera a Lutero em Augsburgo, em 1518, publicou “Comentário sobre todos os livros históricos fidedignos do Antigo Testa¬mento”, em 1532, omitindo os apócrifos. Antes ainda desse fato, o cardeal Ximenes havia feito distinção entre os apócrifos e o cânon do Antigo Testamento, em sua obra “Poliglota complutense” (1514-1517). Tendo em mente essa concepção, os protestantes em geral rejeitaram a decisão do Concílio de Trento, que não tivera base sólida.
8. Uso não-católico. O uso dos livros apócrifos entre igrejas ortodoxas, anglicanas e protestantes foi desigual e diferenciado. Algumas os usam no culto público. Muitas Bíblias contêm traduções dos livros apócrifos, ainda que colocados numa seção à parte, em geral entre o Antigo e o Novo Testamento. Ainda que não-católicos façam uso dos livros apócrifos, nunca lhes deram a mesma autoridade canônica do resto da Bíblia. Os não-católicos usam os apócrifos em suas devocionais, mais do que na afirmação doutrinária.
9. Os rolos do mar Morto. Muitos livros não-canônicos foram descobertos em Qumran, dentre os quais comentários e manuais. Era uma bi¬blioteca que continha numerosos livros não tidos como inspirados pela Comunidade. Visto que na biblioteca de Qumram não se descobriram comentários nem citações autorizadas sobre os livros apócrifos, não existem evidências de que eram tidos como inspirados. Podemos presumir, portanto, que aquela comunidade cristã não considerava os apócrifos canónicos. Ainda que se encontrassem evidências em contrário, o fato de esse grupo ser uma seita que se separara do judaísmo oficial mostraria ser natural que não fosse ortodoxo em todas as suas crenças. Tanto quanto podemos distinguir, contudo, esse grupo era ortodoxo quanto à canonicidade do Antigo Testamento. Em outras palavras, não aceitavam a canonicidade dos livros apócrifos.
Resumo e conclusão
O cânon do Antigo Testamento até a época de Neemias compreendia 22 (ou 24) livros em hebraico, que, nas Bíblias dos cristãos, seriam 39, como já se verificara por volta do século IV a.C As objeções de menor monta a partir dessa época não mudaram o conteúdo do cânon. Foram os livros chamados apócrifos, escritos depois dessa época, que obtiveram grande circulação entre os cristãos, por causa da influência da tradução grega de Alexandria. Visto que alguns dos primeiros pais da igreja, de modo especial no Ocidente, mencionaram esses livros em seus escritos, a igreja (em grande parte por influência de Agostinho) deu-lhes uso mais amplo e eclesiástico. No entanto, até a época da Reforma esses livros não eram considerados canónicos.
A canonização que receberam no Concílio de Trento não recebeu o apoio da história. A decisão desse concílio foi polêmica e eivada de preconceito, como já o demonstramos.
Que os livros apócrifos, seja qual for o valor devocional ou eclesiástico que tiverem, não são canônicos, comprova-se pelos seguintes fatos:
1. A comunidade judaica jamais os aceitou como canónicos.
2. Não foram aceitos por Jesus, nem pelos autores do Novo Testamento.
3. A maior parte dos primeiros grandes pais da igreja rejeitou sua canonicidade.
4. Nenhum concílio da igreja os considerou canônicos senão no final do século IV.
5. Jerônimo, o grande especialista bíblico e tradutor da Vulgata, rejei¬tou fortemente os livros apócrifos.
6. Muitos estudiosos católicos romanos, ainda ao longo da Reforma, rejeitaram os livros apócrifos.
7. Nenhuma igreja ortodoxa grega, anglicana ou protestante, até a pre¬sente data, reconheceu os apócrifos como inspirados e canônicos, no sen¬tido integral dessas palavras.
À vista desses fatos importantíssimos, torna-se absolutamente necessário que os cristãos de hoje jamais usem os livros apócrifos como se fossem Palavra de Deus, nem os citem em apoio autorizado a qualquer doutrina cristã.
Com efeito, quando examinados segundo os critérios elevados de canonicidade, estabelecidos e discutidos, verificamos que aos livros apócrifos falta o seguinte:
1. Os apócrifos não reivindicam ser proféticos.
2. Não detêm a autoridade de Deus.
3. Contêm erros históricos (v. Tobias 1.3-5 e 14.11) e graves heresias teológicas, como a oração pelos mortos (2 Macabeus 12.45[46]; 4).
4. Embora seu conteúdo tenha algum valor para a edificação nos mo¬mentos devocionais, na maior parte se trata de texto repetitivo; são textos que já se encontram nos livros canônicos.
5. Há evidente ausência de profecia, o que não ocorre nos livros canônicos.
6. Os apócrifos nada acrescentam ao nosso conhecimento das verda¬des messiânicas.
7. O povo de Deus, a quem os apócrifos teriam sido originariamente apresentados, recusou-os terminantemente.
A comunidade judaica nunca mudou de opinião a respeito dos livros apócrifos. Alguns cristãos têm sido menos rígidos e categóricos; mas, seja qual for o valor que se lhes atribui, fica evidente que a igreja como um todo nunca aceitou os livros apócrifos como Escrituras Sagradas.