Esta página tem por finalidade colocar à disposição dos meus alunos da Escola Teológica Rev. Celso Lopes textos referentes à matéria título do blog
quinta-feira, 1 de novembro de 2007
Aula 13 - A recuperação do texto da Bíblia
Embora não se tenham notícias da existência de autógrafos do Antigo e do Novo Testamento, existem numerosas cópias manuscritas e citações à disposição dos estudiosos da Bíblia, que os ajudam em seus esforços no sentido de recuperar o texto bíblico original. Em complementação às evidências que temos discutindo nas últimas aulas, dispomos também de outras evidências de apoio ao texto bíblico, provenientes de suas várias traduções. Esse assunto será discutido na próxima lição. No momento, nosso interesse é a questão do papel da crítica textual na restauração do próprio texto, e não a tradução desse texto nas inúmeras línguas.
O problema da crítica textual
O problema da crítica textual gira em torno de três questões básicas: genuinidade e confiabilidade, evidências de manuscritos e as variantes. Ainda que cada integrante desse assunto tenha sido mencionado repeti¬damente em nossas discussões anteriores, é necessário que se dê um tra¬tamento mais minucioso aos tópicos em questão.
A autenticidade e a confíabilidade
Autenticidade é o termo que se emprega na crítica textual em referência à verdade sobre a origem de um documento, ou seja, sua autoria. Como mostramos na aula anterior, a autenticidade é assunto que concerne primordialmente à Introdução Especial ao estudo da Bíblia, visto que se relaciona a questões como autoria do texto, data e destinatário dos livros bíblicos. A Introdução Geral está interessada em questões como inspiração, autoridade, canonicidade e confiabilidade dos livros da Bíblia. As perguntas a que a autenticidade responde são estas: "Esse documento realmente procede da fonte ou autor que se alega? É verdadeiramente obra do escritor a que se atribui?".
Confiabilidade refere-se à verdade dos fatos ou do conteúdo dos documentos da Bíblia. Trata primordialmente da integridade (fidedignidade) e da credibilidade (verdade) dos registros. Em suma, um livro pode ser autêntico sem ser confiável, se quem se professa escritor é verdadeiramente seu autor, ainda que o conteúdo não expresse a verdade. E mais: um livro pode ser confiável sem ser autêntico, caso seu conteúdo seja verdadeiro, mas o autor alegado não seja realmente quem o escreveu. Portanto, no estudo da Introdução Geral, o interesse está na integridade do texto, com base em sua credibilidade e autoridade. Presume-se que determinado livro bíblico, que recebeu autoridade divina e, por isso mesmo, credibilidade, tendo sido transmitido com integridade, possui automaticamente autenticidade. Se houver uma mentira no livro a respeito de sua origem ou autoria, de que forma se poderia crer em seu conteúdo?
As evidências dos manuscritos
Creio que será benéfico que se faça, neste momento, um resumo das evidências dos manuscritos, com respeito ao texto bíblico. Rever o assunto nos revelará a diferença básica de abordagem da crítica textual de cada Testamento.
O Antigo Testamento sobreviveu e chegou até nós em alguns manuscritos completos, a maioria dos quais data do século IX d.C. ou é de data posterior. Há, entretanto, abundantes razões para que acreditemos que essas cópias são boas. Várias evidências apoiam essa afirmação: 1) as poucas variantes existentes nos manuscritos massoréticos; 2) a harmonia quase literal existente entre a maior parte da LXX e o Texto massorético hebraico; 3) as regras escrupulosas dos escribas que copiavam os manuscritos; 4) a similaridade de passagens paralelas do Antigo Testamento; 5) a confirmação arqueológica de minúcias históricas do texto; 6) a concordância em grande parte com o Pentateuco samaritano; 7) os milhares de rnanuscritos Cairo Geneza e 8) a confirmação fenomenal do texto hebraico advinda das descobertas dos rolos do mar Morto.
O Novo Testamento. Seus manuscritos são numerosos, como também são numerosos os textos paralelos, com variantes. Conseqúentemente, faz-se necessária aciência chamada crítica textual, para que haja recuperação do texto original do Novo Testamento. Mais de 5.000 manuscritos gregos que datam do século IIi em diante dão testemunho do texto. Em contraposição ao Antigo Testamento, que conta apenas com uns poucos manuscritos bons, o Novo Testamento possui muitos manuscritos de qualidade inferior, i.e., que apresentam mais variantes.
As variantes
A multiplicidade de manuscritos produz número correspondente de
variantes. É que, quanto maior o número de manuscritos copiados, maiores eram as possibilidades de erros cometidos pelos copistas. Todavia,
em vez de constituir empecilho à tarefa de recuperação do texto bíblico
original, essa situação na verdade se torna extremamente benéfica.
As variantes do Antigo Testamento são relativamente raras, por diversas razões: 1) havia uma única tradição importante de manuscrito, pelo que o número total de erros é menor; 2) as cópias eram produzidas por escribas oficiais que trabalhavam seguindo regras rigorosas; 3) os massoretas sistematicamente destruíam todas as cópias em que se detectassem "erros" ou variantes. A descoberta dos rolos do mar Morto serviu de espantosa confirmação da fidelidade do Texto massorético, o que se comprova pelas conclusões de estudiosos do Antigo Testamento como Millar Burrows, em sua obra The Dead Sea Scrolls; R. Laird Harris, em Inspiration and canonicity of the Bible; Gleason L. Archer, Jr., A survey of Old Testament introduction e F. F. Bruce, Second thoughts on the Dead Sea Scrolls [Uma investigação mais aprofundada sobre os rolos do mar Morto]. Uma soma total dos testemunhos desses estudiosos é que existem tão poucas variantes entre o Texto massorético e o dos rolos do mar Morto, que esses confirmam a integridade daquele. Sempre que há divergências, os rolos do mar Morto tendem a dar apoio ao texto da Septuaginta (LXX).
Visto que o Texto massorético deriva de uma fonte singular, que fora padronizada por estudiosos judeus aproximadamente em 100 d.C., a descoberta de manuscritos anteriores a essa data esparge nova luz na história do texto do Antigo Testamento de antes dessa época. Além das três tradições textuais básicas do Antigo Testamento que já haviam sido reconhecidas (massorética, samaritana e grega), os rolos do mar Morto revelaram a existência de três outros tipos de textos: um protomassorético, um proto-Septuaginta e um proto-samaritano. As tentativas por traçar as linhas de relacionamento entre essas famílias de textos ainda se acham em fase embrionária; a situação exige estudos profundos e dedicação. Presentemente, o Texto massorético é considerado básico, visto que tanto o texto samaritano como a Septuaginta baseiam-se em traduções do texto hebraico. No entanto, os rolos do mar Morto mostram que existem passagens em que a Septuaginta traz o texto preferido. O problema básico é apurar a grandeza da diferença existente entre as tradições hebraica e grega.
As variantes do Novo Testamento. As variantes do Novo Testamento são muito mais abundantes do que as do Antigo, em vista do maior número de manuscritos e das numerosas cópias não-oficiais que foram feitas, de caráter particular. Cada vez que se descobre um manuscrito novo, aumenta o número bruto de variantes. Pode-se ver isso comparando-se o número aproximado de 30 000 variantes, segundo cálculo de John Mill, em 1707, às quase 150 000 computadas por F. H. A. Scrivener em 1874 e às mais de 200 000 recalculadas em nossos dias. Há certa ambiguidade em afirmar que há cerca de 200 000 variantes, visto que essas representam apenas cerca de 10 000 passagens do Novo Testamento. Se uma única palavra foi escrita erroneamente em 3.000 manuscritos diferentes, são contadas como 3.000 variantes. Uma vez entendido o processo de conta¬gem e se eliminem as variantes de ordem mecânica (ortográfica), as variantes mais importantes que permanecem são surpreendentemente poucas sob o aspecto numérico.
Para que se compreenda integralmente o significado das variantes nos textos paralelos e se apure a redação correta (a original), é necessário, primeiro, que se examine de que forma essas variantes se introduziram no texto bíblico. Embora esses princípios também se apliquem ao Antigo Testamento, são usados aqui apenas com referência ao Novo.
Em geral, os estudantes cuidadosos da crítica textual acreditam haver dois tipos de erros: os não-intencionais e os intencionais.
As alterações textuais não-intencionais de vários tipos surgem da imperfeição natural do ser humano. São numerosas e aparecem na transcrição dos textos.
Os erros da vista humana, por exemplo, resultam em vários tipos de variantes. Dentre esses, há os que resultam da divisão errônea de uma palavra, o que acaba por gerar novas palavras. Visto que os manuscritos originais não separavam as palavras entre si, mediante espaços, a divi¬são mental errônea de quem lia e copiava a palavra redundava em novo texto — errôneo. Vamos usar um exemplo em português:
[ENCONTREIMECOMAMADOCASTELOBRANCO]
Poderia significar:
[ENCONTREI-ME COM AMADO CASTELO BRANCO.]
ou
[ENCONTREI-ME COM AMA DO CASTELO BRANCO.].
A omissão de letras, de palavras e até de linhas inteiras do texto ocorria quando um olho astigmático pulava de um grupo de letras ou palavras a outro grupo semelhante. Esse erro em particular é causado por homoteleuto (finais semelhantes). Quando apenas uma letra está faltando, o erro se chama haplografia (grafia simples). Repetição é o erro oposto à omissão. Quan¬do a vista apanhasse a mesma letra ou palavra duas vezes, esse erro era chamado de ditografia. Foi a partir de um erro desse tipo, com alguns manuscritos chamados minúsculos, que surgiu o seguinte texto: "Qual quereis que vos solte? Barrabás, ou Jesus, chamado Cristo?" (Mt 27.17).
A transposição é a inversão de duas letras ou palavras, e tecnicamente se denomina metátese. Em 2Crônicas 3.4, a transposição de letras alterou as medidas do pátio do templo de Salomão para 120 côvados em vez de 20, como corretamente aparece na LXX. Outras confusões com letras, abreviaturas e inserções de escribas explicam os demais erros desses profissi¬onais da cópia. Esse é o caso sobretudo no que diz respeito às letras do hebraico, que também são usadas como números. Pode-se ver alguma confusão no Antigo Testamento, quando há divergêcia entre os números de passagens correspondentes. Veja-se, e.g., 40.000 em 1Reis 4.26 em oposição a 4.000 em 2Crônicas 9.25; os 42 anos em 2Crônicas 22.2, contra¬pondo-se à anotação certa de 22 anos em 2Reis 8.26, é erro que também se enquadra nessa categoria.
Os erros decorrentes da audição só ocorriam quando os manuscritos eram copiados por um escriba que ouvia o ditado de quem os lia. Isso explica por que alguns manuscritos (depois do século V d.C.) trazem kamelos (corda) em vez de kamêlos (camelo), em Mateus 19.24; kauthasomai (ele queima) em vez de kauchasomai (ele se gloria) em 1 Coríntios 13.3, e outras alterações semelhantes no texto do Novo Testamento.
Os erros de memória não são numerosos, mas por vezes um escriba se esquecia da palavra exata na passagem e a substituía por um sinônimo. É possível que se tenha deixado influenciar por uma passagem ou verdade paralela, como no caso de Efésios 5.9, talvez confundida com Galatas 5.22, mais a adição de Hebreus 9.22: "... não há remissão [de pecados]".
Os erros de julgamento em geral são atribuídos à má iluminação ambiental, ou à má visão do escriba que copiou o manuscrito. Às vezes, as notas marginais eram incorporadas ao texto nesses casos, ou tais erros seriam resultado da sonolência do escriba. Sem dúvida alguma, teríamos uma dessas causas na raiz da redação variante de João 5.4, de 2Coríntios 8.4,5 etc. Às vezes é difícil diferenciar o caso e dizer se determinada variante resultou de um julgamento errôneo, ou de mudanças doutrinárias intencionais. Sem dúvida 1João 5.8, João 7.53—8.11 e Atos 8.37 enquadram-se em uma dessas categorias.
Os erros de grafia são atribuídos a escribas que, graças a um estilo imperfeito ou a um acidente, escreviam de modo pouco definido ou impreciso, e assim cometeram erros posteriormente enquadrados como er¬ros de visão ou de julgamento. Em algumas ocasiões, por exemplo, o escriba poderia esquecer-se de inserir certo número ou palavra no texto que estava transcrevendo, como no caso da omissão de número em 1Samuel 13.1.
As mudanças intencionais explicam grande número de variantes, ainda que a vasta maioria seja atribuída a erros não-intencionais. Erros cometidos de propósito poderiam talvez ter sido motivados por boas inten¬ções, mas é certo que são alterações deliberadas do texto.
Entre os fatores que influíram na inserção de alterações deliberadas num texto bíblico estão as variantes gramaticais e linguísticas. Essas variantes ortográficas na grafia, na eufonia e no léxico repetem-se muito nos papiros; cada tradição escribal tinha idiossincrasias próprias. Dentro dessas tradições, o escriba poderia tender a modificar seus manuscritos, a fim de fazer que se conformassem com as tradições. As mudanças, nesse caso, incluíam nomes próprios, formas verbais, acertos gramaticais, mudanças de gênero e alterações sintáticas.
As mudanças litúrgicas encontram-se em grande número nos lecionários. Seriam feitas pequenas alterações no início de uma passagem; às vezes, uma passagem grande era resumida só para uso no culto. Às vezes, uma mudança desse tipo passava a incorporar o próprio texto bíblico, como foi o caso da “doxologia"(Fórmula litúrgica de louvor a Deus) na oração dominical (Mt 6.13). As mudanças harmonizacionais aparecem com frequência nos evangelhos, quando o escriba tentou harmonizar um relato num documento com passagem correspondente de outro documento (v. Lc 11.2-4 e Mt 6.9-13), ou em Atos 9.5,6, que se alterou a fim de ficar mais em acordo literal com Atos 26.14,15. Do mesmo modo, algumas citações do Antigo Testamento foram ampliadas, em alguns documentos, para se harmonizarem com maior precisão à LXX (cf. Mt 15.8 com Is 29.13, em que a expressão este povo foi acrescentada). As mudanças históricas e factuais às vezes eram introduzidas por escribas bem-intencionados. João 19.14 foi alterado em alguns manuscritos, de modo que neles se lê hora “terceira" em vez de “sexta", e Marcos 8.31, em que "depois de três dias" foi alterado para "no terceiro dia", em alguns manuscritos. As mudanças sincréticas resultam da combinação ou da mistura de duas ou mais variantes, de modo que se cria um único texto, como provavelmente é o caso de Marcos 9.49 e Romanos 3.22.
As mudanças doutrinárias constituem a última categoria de alterações propositais dos escribas. A maior parte das alterações doutrinárias deliberadas foram introduzidas com vistas na ortodoxia, como a referência à Trindade, em 1 João 5.7,8. Outras alterações, ainda que surgidas por cau¬sa das boas intenções, têm tido o efeito de acrescentar ao texto algo que não fazia parte do ensino original naquela altura. Talvez seja esse o caso da adição de "jejum" à palavra "oração" em Marcos 9.29, e do chamado "final mais longo" desse mesmo evangelho (Mc 16.9-20). Todavia, nem mesmo aqui o texto é herético. É importante que se ressalte, nesta altura, que nenhuma doutrina cristã baseia-se num texto sob objeção, e todo estudioso do Novo Testamento precisa estar consciente da iniquidade que é alterar um texto simplesmente com base em considerações doutrinárias infundadas.
Quando se comparam os textos chamados variantes, do Novo Testamento, com outros textos de outros livros que sobreviveram desde a antiguidade, as conclusões são maravilhosas; pouco falta para que as consideremos espantosas. Por exemplo, embora haja cerca de 200 000 "erros" nos manuscritos do Novo Testamento, eles só aparecem em cerca de 10 000 trechos, e apenas cerca de uma sexagésima parte deles ergue-se acima do nível das trivialidades. Westcott e Hort, Ezra Abbot, Philip Schaff e A. T. Robertson avaliaram com o máximo cuidado as evidências e che¬garam à conclusão de que o texto do Novo Testamento tem pureza superior a 99%. À luz do fato de haver mais de 5.000 manuscrítos gregos, cerca de 9.000 versões e traduções, as evidências da integridade do Novo Testamento estão fora de questão.
Isso é válido, sobretudo, quando consideramos que alguns dos maiores textos da antiguidade sobreviveram em apenas um punhado de manuscritos. Quando se compara a natureza, ou a qualidade, desses escritos com os manuscritos bíblicos, estes ficam em posição audaciosamente saliente no que concerne à integridade. Bruce M. Metzger fez um excelente estudo da Ilíada, de Homero, e da Mahãbhãrata da índia, em sua obra Chapters in the history of New Testament textual criticism [Capítulos da história da crítica textual do Novo Testamento]. Em seu estudo, o autor demonstra que a corrupção textual desses livros ditos “sagrados” é muito maior do que a que acometeu o Novo Testamento. A Ilíada é particularmente cabível para esse estudo, por ter tanta coisa em comum com o Novo Testamento. Depois do Novo Testamento, a Ilíada é a obra que tem o maior número de manuscritos disponíveis hoje, mais que qualquer outra obra (453 papiros, 2 unciais e 188 minúsculos, ou seja, 643 no total). À semelhança da Bíblia, essa obra foi considerada sagrada, sofrendo mudanças textuais, e seus manuscritos em grego também passaram pela crítica textual. Enquanto o Novo Testamento apresenta cerca de 20 000 linhas, a Ilíada tem cerca de 15 000. Apenas 40 linhas (cerca de 400 palavras) do Novo Testamento inspiram dúvidas, mas 764 linhas da Ilíada estão sob questionamento. Portanto, 5% da Ilíada sofreram corrupção, contra menos de 1% do Novo Testamento. O poema épico nacional da índia, Mahãbhãrata, sofreu um processo mais grave ainda de corrupção. É cerca de oito vezes maior que a Ilíada e a Odisseia juntas, com cerca de 250 000 linhas. Dessas, cerca de 26 000 linhas estão corrompidas textualmente, i.e., pouco mais de 10%.
Assim é que o Novo Testamento não só sobreviveu em um número maior de manuscritos, mais que qualquer outro livro da antiguidade, mas sobreviveu em forma muito mais pura (99% de pureza) que qual¬quer outra obra grandiosa, sagrada ou não. Até mesmo o Alcorão, que não é livro antigo, pois originou-se no século VII d.C., sofreu o processo de aparecimento de grande número de variantes que precisaram da revisão de Orthman. De fato, ainda existem sete modos de ler o texto (vocalização e pontuação), todas baseadas na revisão de Orthman, que se fez cerca de vinte anos após a morte do próprio Maomé.
Os princípios da crítica textual
A apreciação completa da tarefa árdua de reconstruir o texto do Novo Testamento a partir de milhares de manuscritos, com dezenas de milhares de variantes, pode dar-se, em parte, pelo estudo de quantos críticos textuais se engajaram nesse trabalho. Esses usaram dois tipos de evidên¬cias: as externas e as internas.
Evidência externa
A evidência externa distribui-se em três variedades básicas: cronológica, geográfica e genealógica. As evidências cronológicas dizem respeito à data do tipo de texto, e não à data do próprio manuscrito. Os tipos de texto mais antigos trazem textos que devem ser preferidos, em vez de textos posteriores, mais recentes. A distribuição geográfica dos testemunhos independentes em acordo entre si, no apoio a uma variante devem ser preferidos aos testemunhos que têm proximidade ou relacionamento maior. Os relacionamentos genealógicos entre os manuscritos seguem o que foi tratado na aula anterior. Das quatro famílias textuais mais importantes, a alexandrina é considerada a família mais confiável, ainda que às vezes apresente uma correção dos "estudiosos". Os textos que contam com o apoio de bons representantes de dois ou mais tipos de textos de¬vem ter preferência sobre um único tipo de texto. O texto bizantino em geral é considerado o mais pobre de todos. Quando os manuscritos que se encaixam em determinado tipo de texto dividem-se no apoio que dão a determinada variante, o verdadeiro texto provavelmente é o dos manuscritos que em geral se mostram mais fiéis a seu próprio tipo de texto; o texto que difere dos demais tipos de texto, o texto que é diferente da família textual bizantina, ou o texto que caracteriza melhor o tipo de texto a que pertencem os manuscritos em questão.
Evidência interna
A evidência interna classifica-se em duas variedades básicas: a transcripcional (que depende dos hábitos dos escribas) e a intrínseca (que depende dos hábitos dos autores). A evidência transcripcional baseia-se em quatro assertivas genéricas: o texto mais difícil (para o escriba) é preferível, de modo especial se for sensato; o texto mais curto é preferível, a menos que tenha surgido por omissão acidental de algumas linhas, em razão de finais semelhantes ou de eliminação intencional; deve-se preferir o texto verbalmente mais dissonante das passagens paralelas, ainda que sejam citações do Antigo Testamento; e deve-se preferir a construção gramatical, expressão ou termo menos refinados.
A evidência intrínseca depende da probabilidade daquilo que o autor provavelmente escreveu. É determinada pelo estilo do autor ao longo do livro (e em outras passagens), pelo contexto imediato da passagem, pela harmonia do texto com o ensino do autor em outra passagem (bem como com outros textos canônicos) e pela influência do contexto geral do autor.
Ao examinar todos os fatores internos e externos da crítica textual, é essencial que se perceba que seu uso não é meramente uma aplicação da ciência, mas também de uma arte delicada. Algumas observações podem ajudar o iniciante a ficar familiarizado com o processo da crítica textual. Em geral, a evidência externa é mais importante que a interna, visto ser mais objetiva. As decisões devem levar em conta a evidência interna tanto quanto a externa, na avaliação do texto, visto que nenhum manuscrito ou tipo de texto contém todas as grafias corretas. Em algumas ocasiões, diferentes estudiosos aparecerão com posições conflitante entre si, à vista dos elementos subjetivos da evidência interna.
Gleason Archer sugere, muito cautelosamente, as prioridades que deveriam ser empregadas no caso de encontrar-se uma variante textual 1) deve-se preferir o texto mais antigo; 2) deve-se preterir o texto mais difícil; 3) deve-se preferir o texto mais curto; 4) deve-se preferir o texto que explique melhor as variantes; 5) o apoio geográfico mais amplo dado a um texto faz que ele seja o preferido; 6) deve-se preferir o texto que se conforme melhor com o estilo e com o vocabulário do autor e 7) deve-se preferir o texto que não dê sinais de desvio doutrinário.
A prática da crítica textual
O modo mais prático de observar os resultados dos princípios da críti¬ca textual é comparar as diferenças entre a Versão autorizada do rei Tiago .(KJV), de 1611, baseada no texto recebido, e a Versão padrão americana (ASV)/ de 1901, ou a Versão padrão revisada (RSV), de 1946 e 1952, que se baseiam no texto crítico. Uma pesquisa de várias passagens servirá para ilustrar o procedimento usado para fazer a reconstituição do verdadeiro texto.
Exemplos do Antigo Testamento
Deuteronômio 32.8 provê outro exercício interessante sobre a crítica textual do Antigo Testamento. O Texto massorético é acompanhado pelo texto do rei Tiago (KJV) e pela ASV, ao dizer: "O Altíssimo distribuiu as heranças às nações [...] determinou os limites dos povos, segundo o número dos filhos de Israel". A RSV seguiu o texto da LXX: "de acordo com o número dos filhos [ou anjos] de Deus". Um fragmento de Qumran dá apoio ao texto da LXX. Segundo os princípios da crítica textual que mostramos anteriormente, a RSV está correta porque 1) traz o texto mais difícil, 2) tem o apoio do manuscrito mais novo que se conhece, 3) está em harmonia com a descrição patriarcal de os anjos serem "filhos de Deus" (cf. Jó 1.6; 2.1; 38.7 e possivelmente Gn 6.4) e 4) explica a origem da outra variante.
Zacarias 12.10 ilustra a mesma questão. As versões KJV e ASV seguem o Texto massorético: "Olharão para mim [o lavé], a quem trespassaram". A RSV segue a Versão teodosiana (c. 180 d. C.) ao traduzir: "Quando olharem aquele a quem trespassaram". O Texto massorético preserva a redação preferida porque 1) baseia-se em manuscritos mais antigos e melhores, 2) é o texto mais difícil e 3) pode explicar as demais redações com base no preconceito teológico contra a divindade de Cristo, ou pela influência da mudança ocorrida no Novo Testamento da primeira para a terceira pessoa, na citação dessa passagem (cf. Jo 19.37).
Outras variantes importantes entre o Texto massorético e a LXX foram esclarecidas mediante a descoberta dos rolos do mar Morto; nesses exemplos, tendem a dar apoio à LXX. Dentre tais passagens estão Hebreus 1.6 (KJV), que segue a citação de Deuteronômio 32.43, a famosa passagem de Isaías 7.14 ("e será o seu nome Emanuel"), em vez da redação massorética: "ela chamará seu nome". A Septuaginta traz uma versão de Jeremias com 60 versículos a menos em relação ao Texto massorético, e o fragmento de Qumran de Jeremias tende a apoiar o texto grego. Tais ilustrações não devem ser tomadas como quadro uniforme dos rolos do mar Morto, sempre dando apoio ao texto da Septuaginta, visto que não existem muitas variantes do Texto massorético entre os manuscritos encontrados nas grutas do mar Morto. Em geral os rolos tendem a confirmar a integridade do Texto massorético. As passagens indicadas aqui são meros exemplos dos problemas e dos princípios da crítica textual, no exercício dos estudiosos de expurgar o texto do Antigo Testamento de eventuais incorreções.
Exemplos do Novo Testamento
Marcos 16.9-20 (KJV) apresenta-nos o problema textual mais grave, que nos deixa mais perplexos, dentre todos. Esses versículos estão ausentes em muitos dos mais antigos e melhores manuscritos, como o א(Álefe), o B, o itk (Antiga latina), a Siríaca sinaítica, muitos manuscritos armênios e al¬guns etíopes. Muitos dos antigos pais da igreja não demonstram ter conhecimento desse problema, e Jerônimo admitia que essa passagem havia sido omitida em quase todas as cópias gregas. Dentre as cópias que con¬têm esses versículos, algumas também trazem um asterisco ou óbelo, a fim de indicar que se trata de adição espúria ao texto. Há ainda outro final que ocorre em vários unciais, em alguns minúsculos e em cópias de ver¬sões antigas. O longo final com que estamos tão familiarizados, vindo da KJV e do texto recebido, encontra-se em grande número de unciais (c, D, L, w e θ [Theta], na maior parte dos minúsculos, na maior parte dos manuscritos da Antiga latina, na Vulgata latina e em alguns manuscritos siríacos e coptas. No Códice w, o final longo expande-se depois do versículo 14.
A decisão sobre qual desses finais é o preferível ainda é controvertida, visto que nenhum dos finais propostos eleva-se como se fora o original, à vista das poucas evidências textuais, por causa do sabor apócrifo e do estilo diferente do de Marcos, perceptível em todos os finais. Assirn, se nenhum desses finais é autêntico, torna-se difícil crer que Marcos 16.8 não é o final original. John W. Burgon fez uma defesa do texto recebido (vv. 9-20) e, mais recentemente, M. van der Valk, ainda que se admita que é muito difícil chegar a uma solução ou decisão sobre qual final é o original de Marcos. Com base nas evidências textuais conhecidas, parece mais plausível admitir que o final original do evangelho de Marcos é o versículo 8.
João 7.53 - 8.11 (KJV) relata a história da mulher apanhada em adultério. Está inserida entre parênteses na ASV, com uma nota que diz que os manuscritos mais antigos omitem essa passagem. A RSV coloca a passagem em questão entre parênteses, no final do evangelho de João, com uma nota que diz que as antigas autoridades colocavam-na ali, ou depois de Lucas 21.38. Não existe nenhuma evidência de que essa passagem faça parte do evangelho de João porque 1) não está nos manuscritos gregos mais antigos e melhores; 2) nem Taciano, nem o texto da Antiga siríaca, dão sinais de tê-la conhecido, estando ausente também nos melhores manuscritos da Siríaca peshita, nos da Copta, em vários da Gótica e da Antiga latina; 3) nenhum autor grego faz referência a essa passagem senão no século XII; 4) seu estilo — e interrupção — não se enquadram no contexto do quarto evangelho; 5) aparece inicialmente no Códide Beza em c. 550; 6) vários escribas colocam-na em outros lugares (e.g., depois de Jo 7.36; Jo 21.24; Jo 7.44 ou Lc 21.38) e 7) muitos manuscritos que incluem essa passagem indicam haver dúvidas sobre sua integridade, marcando-a com um óbelo. O resultado é que tal passagem pode ser preservada como se fora uma história verdadeira, mas da perspectiva da crítica textual, deve ser colocada como apêndice de João, com uma nota que diga que a passagem não tem lugar determinado nos manuscritos antigos.
1 João 5.7 (KJV) está ausente na ASV e na RSV, sem explicações. Todavia, existe uma explicação para essa omissão, a qual representa uma historieta interessante sobre o processo da crítica textual. Quase não existe apoio textual para a redação apresentada pela KJV, em nenhum documento grego, ainda que haja apoio na Vulgata. Então, quando Erasmo foi desafiado, e lhe perguntaram por que ele não incluíra essa passagem em seu Novo Testamento grego, em 1516 e em 1519, o estudioso respondeu rapidamente que a incluiria na próxima edição, desde que alguém lhe mostrasse pelo menos um manuscrito antigo que lhe desse apoio. Descobriu-se um minúsculo grego do século XVI, o manuscrito de 1520, do frei franciscano Froy, ou Roy. Erasmo cumpriu sua promessa e incluiu esse texto em sua edição de 1522. A KJV seguiu o texto grego de Erasmo e assim foi: com base num único manuscrito tardio, insignificante, desprezou-se todo o peso e autoridade de todos os demais manuscritos gregos. Na verdade, a inclusão desse versículo como genuíno quebra quase todos os cânones principais da crítica textual.
Com base nos casos acima estudados, deveria ficar claro que a crítica textual é uma ciência e também uma arte. Não basta afirmar que a Bíblia é o livro mais bem preservado, que sobreviveu desde os tempos antigos, mas lembremo-nos também de que as variantes de certa importância representam menos da metade de 1% de corrupção textual, e que nenhuma dessas variantes influi em alguma doutrina básica do cristíanismo. Alem disso, a crítica textual tem à sua disposição uma série de cânones que, para todos os efeitos práticos, capacita os estudiosos bíblico a recuperar de modo completo o texto exato dos autógrafos hebraicos e gregos das Escrituras - não só linha por linha, mas palavra por palavra.
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Quem sou eu
- Pastor Pedro
- Sou pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil, mestrando em Divindade (Magister Divinity), pelo CPAJ (Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper). Sou também professor de História da Igreja, de Introdução Bíblica, e Cartas Gerais, na Escola Teológica Rev. Celso Lopes, em Maceió AL. Além disso, sou coronel-aviador da Força Aérea Brasileira, já reformado.
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